quarta-feira, 22 de junho de 2011

Oh, meu Francisco, não deves mais chorar!



 

Ainda nos anos 80, Frei Felipe ensinou aos noviços uma música tradicional italiana que, a cada ano que passa, toma um novo e mais profundo sentido para nós, ensinando-nos muito sobre a beleza da amizade, dos afetos e da benevolência do Deus que se fez homem como nós:
Chorando, Francisco disse um dia a Jesus:
“Amo o sol e as estrelas, amo Clara e as irmãs,
amo o coração do homem, amo todas as coisas belas.
Oh, meu Senhor, me deves perdoar,
pois só a Ti eu deveria amar.”

Sorrindo, o Senhor respondeu-lhe assim:
“Amo o sol e as estrelas, amo Clara e as irmãs,
amo o coração do homem, amo todas as coisas belas.
Oh, meu Francisco, não deves mais chorar,
porque eu amo aquilo que tu amas.”

Em português a rima certamente não fica lá essas coisas, mas a mensagem ultrapassa em muito esta pobreza poética. Francisco chora porque, além de amar a Deus, ama a natureza – o sol e as estrelas. Culpa-se porque, além de amar a Deus, ama as pessoas – Santa Clara e suas irmãs. Penitencia-se por ser apaixonado pelo homem em sua beleza interior. Acusa-se por amar o que é belo. Aos prantos, pede perdão a Deus pois está convencido que só a Ele deveria amar. Julga-se impuro, ingrato, pecador, por amar outras coisas além de amar a Deus.
O sorriso com o qual lhe responde o Senhor contrasta com o pranto do Pobrezinho de Assis. É fácil imaginar seu rosto surpreso quando ouve o Senhor responder-lhe, sorrindo, que também Ele, o Senhor do Universo, o Deus Altíssimo e Todo Poderoso, também Ele, o Onipotente, o Deus Único, também Ele ama a natureza que criou; ama Clara e as irmãs, que elegeu; ama o coração do homem, que habita. Também Ele, a Beleza Suprema, a Suprema Verdade, ama todas as coisas belas.
Há, entretanto, uma razão muito especial para o Senhor amar todas essas coisas e pessoas. Uma razão acima do fato de serem suas criaturas, seus filhos, sua habitação: é que essas coisas, além de amáveis pelo que são, são amadas por Francisco, seu amado poverello. Porque Francisco ama o Senhor, ama todas as coisas boas e belas, pois tudo o que é bom e belo vem de Deus e o reflete. Porque o Senhor ama Francisco, ama tudo o que ele ama, pois amando o que o Senhor criou, ele o ama acima de todo o criado.
Há em tudo isso uma ternura difícil de expressar. Francisco, em sua inocência, crê pecar por amar aquilo que reflete o amor de Deus, mas que não é Deus. Por isso chora. O Senhor, em sua benevolência, recebe o amor inocente de Francisco e o corrige, explicando que também Ele, o Senhor, ama o que é bom e o que é belo. Deixa entrever que beleza e verdade se supõem. Com seu sorriso, consola o pranto de Francisco. Ensina-lhe, assim, algo tão singelo que por vezes escapa às nossas complicações altivas: o maior mandamento não é amar somente a Deus e não ter afeto por nada ou ninguém; o maior mandamento é amar a Deus, amar o que é bom e belo e, exatamente por isso, amar a Deus acima de todas as coisa boas, belas, verdadeiras e amáveis.
Reconhecer que Ele, que é Amor, é o autor de tudo o que é amável e que amar o que o reflete é uma forma terna, atenta e delicada de amá-lo em tudo e em todos. Em linguagem poética, Francisco é lembrado de que o maior mandamento é amar a Deus acima de todas as coisas que se ama e não excluindo ou não amando as coisas e as pessoas.
Dá o que pensar, essa poesia italiana... Lembra São João: “quem diz que ama a Deus, mas não ama seu irmão...” Bem, você sabe: é mentiroso. Jesus não permitiu que Francisco caísse nessa “mentira”, nessa espiritualidade falsa que deixa de fora os afetos, condenando-os ao invés de utilizá-los para a glória de Deus, tudo ordenando segundo o amor. Sem afetos, o homem não é humano e só o homem “humano”, segundo a estatura de Cristo, com seu corpo, intelecto, afetos, espírito, é, verdadeiramente, espiritual.
Dá o que pensar, também, o modo maravilhoso como Deus se compromete com Francisco. O modo como Ele curva-se sobre seu eleito e lhe é fiel. O modo como Ele, que é o Deus Altíssimo do Poverello, não despreza seus afetos, mas une-se a eles e, assim, fá-los belos, eleva-os e reafirma a capacidade de amar e de contemplar com que criou a ele e a cada um de nós. Ordena, com sua ternura, os afetos de Francisco segundo a ordem do amor: “Também eu, meu Francisco, amo essas coisas. Sou um contigo. Amo o que tu amas, pois tu me amas acima de tudo o que amas”.
Frei Felipe está, agora, no céu. Deve estar sorrindo, com seus olhos verdes – agora não mais míopes – cantarolando para cada um de nós, ternamente: O mio figliolo, non devi pianger più, perchè Dio ama quel che ami tu... Deus lhe pague, Frei Felipe. Você talvez não tenha tido o saber das academias, mas deixou-nos a sabedoria de quem acolhe, humildemente, a própria humanidade e oggi, non piange più. Auguri!

Emmir Nogueira Co-Fundadora da Comunidade Shalom